De engenheira química a confeiteira, ela ensina culinária em Libras e ajuda surdos a tornarem-se empreendedores

Nicole Utzig Mattjie

Conheça a engenheira química que mudou completamente sua vida ao se apaixonar pela gastronomia e pela Libras! Hoje através do ConfeitaLibras ela incentiva surdos a empreenderem na gastronomia.

Vitoria Leite possui graduação e mestrado na área da Engenharia Química e é dona do canal do YouTube e da página do Instagram ConfeitaLibras.

Ela apaixonou-se pela confeitaria por acaso, enquanto vendia brigadeiros no ensino médio. Mas foi após fazer um curso gratuito de Libras, oferecido pela prefeitura de São José dos Campos em São Paulo, que tudo mudou! Foi quando ela decidiu unir duas coisas que ama e atualmente ensina receitas em Libras e incentiva os surdos a entrarem no mundo da gastronomia —que ainda tem pouquíssimo material disponível em língua de sinais aqui no Brasil. Confira na entrevista abaixo.

Quando foi que você se descobriu confeiteira?

Em 2010, aos 15 anos, quando transformei meu hobby culinário em negócio. O amor por doces sempre foi muito evidente nas comemorações em família, rotina da casa, porém, meu entusiasmo em criar e inventar doces artesanais chamou a atenção de vizinhos e amigos com postagens nas redes sociais. Mas, o primeiro passo dessa “aventura” foi no ensino médio, onde ganhei espaço vendendo brigadeiros.

A prática de venda de doces entre amigos no colégio era algo muito comum, então, descobri meu espírito empreendedora nessa fase que tive que me destacar em meio aos “populares”. Foi aí que regularizei a empresa Art’s Brigadeiros para vendas online de doces e bolos, bem como oferecia inúmeros brindes acoplados ao doce, tais como, bijuteria, material escolar, cartão secreto (em paqueras agia como um cupido rs) e vale desconto na compra de um próximo produto, cartão fidelidade, etc.

Fato é que no primeiro mês de vendas faturei 800,00 vendendo apenas brigadeiro. Foi uma grande surpresa! Eu sempre usei produtos de qualidade e abusei da criatividade, saindo do brigadeiro redondinho tradicional, passei a ousar em formatos diferentes, decoração, recheios, doces temáticos e muito mais.

Meu foco inicial não era arranjar um emprego e sim apenas estudar para garantir minha vaga numa faculdade de engenharia química, que era meu sonho. Mas, a confeitaria veio como um agregado à minha carreira estudantil atrelada a um hábito e o somatório desses fatores trouxeram a oportunidade de gerar uma renda sem sacrifícios. Minha produção acontecia aos finais de semana e vendia cerca de 50 brigadeiros diariamente de segunda à sexta nos intervalos de aula do colégio. Os pedidos foram aumentando, passei a fazer cursos de confeitaria e desde então produzia bolos, doces gourmets, parcerias com fornecedores de salgados e buffets.

Em que momento a Libras entrou na sua vida? E como surgiu a ideia de falar sobre confeitaria através da Libras?

Me tornei evangélica aos 15 anos e lá tive meu primeiro contato com a Libras, vendo surdos sendo assistidos por intérpretes e ficava encantada com o trabalho da equipe. Tive a oportunidade de realizar meu primeiro curso de Libras aos 18 anos oferecidos pela prefeitura de São José dos Campos (SP), meu pai foi servidor público e passou por um treinamento de comunicação em Libras ao qual estive com ele como dependente. O curso foi ofertado pela tão renomada AADAS (Associação de Atenção ao Deficiente Auditivo e Surdo) de SJC, pela professora surda Silvana Trigo, que deu uma atividade em sala de aula: Desenvolver e apresentar uma receita culinária em Libras. Naquele momento me veio a ideia de unir minhas 2 paixões: Confeitaria e Libras.

Tal sonho foi sendo alimentado e projetado desde então, até sair integralmente do papel no início de 2020 após ingresso numa pós-graduação em tradução e interpretação da Libras.

“Ao longo dos anos, quanto mais eu estudava e me aprofundava nesse universo da comunidade surda, mais eu entendia a limitação que os surdos tinham em relação a língua brasileira de sinais que nunca foi tão disseminada. Prova disso é que até hoje não se encontra muitos materiais físicos e digitais de culinária em Libras. Visando promover a profissionalização do surdo, engajá-los no mercado de trabalho na área gastronômica e ainda ensinar mais do que receitas. O ConfeitaLibras nasceu para transformar os surdos em empreendedores”.

O projeto conta com parceiros, patrocinadores e oferece conteúdos audiovisuais integralmente em Libras, fazendo com que o surdo e o deficiente auditivo sejam o público-alvo da empresa. Contamos com a distribuição de muito conteúdo gratuito nas redes sociais. E para aqueles que desejam se profissionalizar na área e receber um certificado, pode investir em nossos cursos pagos em diversas áreas da culinária e da confeitaria.

Hoje em dia, o que mais te motiva a realizar o seu trabalho?

Ver centenas de surdos sendo ajudados em todo o Brasil e fora dele através da internet. Ter fundado o ConfeitaLibras em 2020 trouxe um alívio a inúmeras pessoas desempregadas nesse período de crise e pandemia no Brasil. Além disso, ensinamos técnicas para produções simples que podem ser feitos de dentro de casa. Outro ponto é que a área da alimentação está sempre em alta, todos precisamos nos alimentar. Então, o objetivo do projeto é ensinar os surdos a ganhar uma renda extra. Abrir o próprio negócio ou simplesmente aprender a cozinhar e se aperfeiçoar na cozinha.

Minha motivação também se resume a prática da interpretação no contexto religioso. Até hoje me desenvolvo e atuo em cultos evangélicos alimentando a alma dos cristãos surdos também.

Como é a recepção das pessoas com o seu conteúdo?

Tem sido extraordinário ver o quanto o conteúdo tem engajado com nosso público distribuídos em diversas redes sociais da internet. Posso afirmar que uma das maiores vitórias até o momento é ter tido mais de 2 milhões de pessoas alcançadas em menos de 3 meses de inauguração do projeto! Já são mais de 500 alunos desfrutando das aulas ao vivo/pagas e mais de 20 mil pessoas seguindo nossos conteúdos. Diariamente eu e minha equipe recebemos fotos, depoimentos, mensagens de carinho e muitas ideias, dicas, conselhos enviados de surdos de vários estados brasileiros.

Você acha importante que mais profissionais saibam Libras?

O mesmo carinho e agradecimento que recebo por parte dos surdos por eu me importar com sua cultura, sua causa, seu bem estar, sua evolução financeira, seus dotes culinários, por ao menos tentar me desenvolver na língua deles… Certamente todos os profissionais das mais diversas áreas receberiam a mesma empolgação e admiração por fazer a inclusão social verdadeiramente acontecer.

Anualmente há um aumento gradual da mídia, empresas e instituições governamentais usando de recursos de acessibilidade, o que nos traz esperança que venha a melhorar cada dia mais. E que o surdo possa ter a mesma liberdade de acesso aos conteúdos de direito. Usufruir dos planos culturais de sua cidade, ir e vir comunicando-se na sua própria língua. Vale ressaltar que nós brasileiros temos como segunda língua nacionalmente reconhecida a Libras, decretada na Lei 10.436 de 24 de abril de 2002. Ou seja, é mais importante que aprendamos libras do que o próprio inglês, espanhol e outros, pois, pertinho de nós temos um surdo de mesma nacionalidade.

Que dica você daria para quem sonha em trabalhar com confeitaria?

Minha carreira se resume em 3Fs: Força, Fé e Foco. Assim como qualquer outra profissão, a confeitaria exige capacitação e muito treino. Requer investimento, força no sentido de não desistir e se render ao cansaço se tiver que repetir uma mesma receita 10 vezes até acertar o ponto (rs)! Fé é o que moverá seu destino. Acreditar no que faz e que é capaz de aprender com o tempo te leva a crer. A evolução é uma questão de desenvolvimento pessoal, ou seja, quanto mais eu me disponho a aprender, procuro fontes confiáveis e inspiradoras, mais rapidamente eu vou melhorar!

Foque em se tornar o melhor profissional naquilo que te deixa feliz sem se importar com a opinião das pessoas.

Se vale de consolo, tive que ouvir diversas vezes que era um absurdo uma professora engenheira mestra traçar carreira de “boleira”. Sabe de uma coisa? Eu sou muito feliz fazendo bolo e trabalhando com confeitaria… Mas, ter sabedoria para trilhar seus objetivos é um pré-requisito muito importante. Minha graduação e mestrado na área química me fez entender diversos processos físicos e químicos na cozinha, eu verdadeiramente quero que o surdo se sinta um cientista na cozinha assim como eu!

Sabe qual próximo passo? Graduação em gastronomia para me tornar chefe de cozinha! E compensando minha carreira na engenharia, doutorado em gastronomia molecular, área que une a química com truques culinários.

Isso tudo é para mostrar pra você que se hoje você não trabalha na área que sonha ou no fundo admira a confeitaria e adoraria atuar, não precisa mudar seu estilo de vida. Assim sendo, você só precisa adaptar seu currículo e estratégias para agregar a confeitaria à sua rotina. Se já atua, minha única dica é persistência e buscar parcerias que sustente seu negócio! Reinvente-se a todo momento! Lembre-se, um primeiro passo começa com a seguinte frase: “Feito é melhor do que perfeito” – Sheryl Sandberg

Quer saber mais sobre o ConfeitaLibras? Confira um dos vídeos aqui:

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